quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Epidemia de aids não terá fim sem ações direcionadas, diz OMS

Jornal do Comércio - 23/07/2018 

(https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2018/07/639737-epidemia-de-aids-nao-tera-fim-sem-acoes-direcionadas-diz-oms.html)

Agência Brasil 

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse nesta segunda-feira (23) que a epidemia de HIV no mundo não terá fim sem que haja políticas direcionadas para as chamadas populações-chave, sobretudo gays, homens que fazem sexo com homens, trabalhadores do sexo, usuários de drogas e população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e transgêneros).  

"A melhor forma de abordar todo o espectro de suas necessidades de saúde é por meio de sistemas de saúde fortes baseados numa atenção primária centrada nas pessoas e que seja direcionada para alcançar saúde para todos", publicou Tedros em seu perfil na rede social Twitter. 

O diretor-geral da OMS participa nesta segunda da cerimônia de abertura da 22ª Conferência Internacional sobre Aids, que ocorre até a próxima sexta-feira (27) em Amsterdã, na Holanda. O encontro é considerado o maior do mundo sobre o tema e deve reunir especialistas em ciência, direitos humanos e defesa dos interesses de quem vive com HIV. 

O tema deste ano é Quebrando Barreiras, Construindo Pontes. A proposta é chamar a atenção para desafios como estigma, preconceito e outros problemas enfrentados por quem vive com o vírus em algumas partes do mundo, incluindo populações-chave do leste europeu e da Ásia Central, assim como do Oriente Médio e do Norte da África.  

Dados da OMS revelam que homens que fazem sexo com homens, trabalhadores do sexo, pessoas transexuais, usuários de drogas e pessoas encarceradas respondem por 40% das novas infecções por HIV registradas em 2016.


Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2018/07/639737-epidemia-de-aids-nao-tera-fim-sem-acoes-direcionadas-diz-oms.html)

domingo, 18 de agosto de 2019

Após marco em política de redução de danos, país vive retrocesso

Há 30 anos, Santos protagonizava troca de seringas para frear epidemia de Aids

Cláudia Collucci, FSP, 16.abr.2019

Com a decisão do governo de Jair Bolsonaro (PSL) de excluir a redução de danos na sua nova política de drogas, priorizando o tratamento baseado em abstinência, o Brasil dá um enorme passo atrás em uma iniciativa considerada um marco da saúde pública na prevenção das consequências negativas associadas ao uso das drogas.

Programas de redução de danos não cobram abstinência como condição para o tratamento. São direcionados para usuários que não querem ou que não conseguem parar o consumo de drogas. O conceito remonta à Inglaterra de década de 1920, do pós-guerra. Muitos soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial foram tratados com morfina e se tornaram dependentes de opioides. 

Por uma questão de patriotismo, já que se tratavam de heróis da guerra, o próprio governo britânico autorizou que médicos prescrevessem ópio a dependentes em situação de risco.

A proposta voltou à tona na década de 1980, na Holanda. Na época, crescia a disseminação de hepatite B pelo compartilhamento de seringas contaminadas. Com a perspectiva de que uma epidemia de hepatite afetaria a sociedade como uma todo, não só os usuários de drogas, o governo implantou o primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã, em 1984.

Depois disso, em países como Suíça, Espanha (1990) e França (1994) surgiram programas não só de substituição de seringas para frear a epidemia de Aids entre os usuários de drogas injetáveis como também de tratamentos que substituíam o ópio e a heroína por metadona (droga também à base de ópio, porém, de ação mais lenta).

Um estudo da Universidade Pierre e Marie Curie (Paris), publicado em 2006, demonstrou que caíram as taxas de incidência de infecção por HIV entre os usuários de drogas injetáveis após a adoção desses programas: a França, entre 1994 e 2002, observou queda de 23% para 14%. Na Espanha, entre 1996 e 2002, o índice passou de 38% para 33%. Houve queda também de mortes por overdose. Na França, de 588 para 89, entre 1994 e 2003. E na Espanha, de 579 para 221, entre 1991 e 2002.

Há 30 anos, Santos (SP) protagonizava a adoção da primeira política de redução de danos do Brasil. Em 1989, o município passou a distribuir seringas aos usuários de drogas injetáveis para que deixassem de compartilhá-las, evitando, dessa forma, novas infecções por HIV. Com a medida, a prática que era adotada por 70% dos usuários caiu para 20%, segundo estudos feitos naquele período.

O programa também previa a acompanhamento para a redução gradual do consumo e, ao longo prazo, reinserção do usuário na sociedade. Mas foi encerrado após pressão do Ministério Público.

Em 2005, uma portaria do Ministério da Saúde viria a regulamentar os programas de redução de danos como política de saúde pública, mas, na realidade, eles nunca passaram de experiências pontuais. 

Em São Paulo, em 1999, dependentes de crack foram estimulados a consumir maconha em um estudo coordenador pelo psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O trabalho acompanhou 25 usuários de crack por seis meses, que substituíram a droga por maconha. Ao final desse período, 17 tinham abandonado o crack. Ganharam peso e retomaram atividades como estudar e trabalhar. Dos oito restantes, quatro abandonaram o tratamento e outros quatro não conseguiram deixar o crack.

Em 2017, uma pesquisa da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, revisou três estudos que acompanharam 300 usuários de crack no país, sendo que desses, 122 usavam maconha como alternativa. Trinta meses depois, as chances desse grupo reduzir o consumo de crack foram 89% maiores.

O fato é que existe um acúmulo de experiências suficiente para demonstrar que a redução de danos, associada a outras medidas, é uma alternativa efetiva para uma parcela dos usuários. Pode prevenir outros danos associados ao uso de drogas pesadas, como perda de emprego e quebra de vínculos familiares e sociais.

Mas, a despeito das evidências, o atual governo quer se apoiar apenas no tratamento baseado em abstinência que, segundo a literatura médica disponível, seria eficaz para, no máximo, 30% dos usuários. Ou seja, o Brasil investirá numa política que fracassa em 70% dos casos.

Nos últimos anos, as comunidades terapêuticas, que pregam a abstinência, ganharam espaço, apesar das polêmicas em torno desse modelo. Em artigo publicado na Revista Internacional de Direitos Humanos, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp, diz que os mecanismos regulatórios frouxos das comunidades terapêuticas podem resultar em sérios riscos de violações aos direitos humanos e doutrinação religiosa como forma de tratamento aos usuários. Isso tudo com financiamento estatal. 

Ele cita um relatório do Conselho Federal de Psicologia, de 2015, que apontou sérias violações aos direitos humanos em serviços de tratamento para usuários problemáticos de drogas. Entre elas, cárcere privado, trabalho análogo à escravidão e desassistência sanitária.

Não se sabe quantas comunidades terapêuticas no país vivem situações graves como essas. Por isso, é fundamental que esse setor seja investigado e muito bem regulado, especialmente agora que ganha força (e mais recursos públicos) na nova política de drogas. 

Por último, vale lembrar que, em 2017, na 70ª Assembleia Mundial da Saúde, a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou a adoção de estratégias de redução de danos como forma de lidar com as questões sociais associadas à dependência de drogas e garantir acesso a serviços de saúde.

Ao excluir a redução de danos no tratamento de usuários de drogas, o governo Bolsonaro abraça uma visão moralista e religiosa sobre a dependência, que não encontra amparo na boa ciência. 

Magic Johnson, 60, ajudou a quebrar estigma do HIV

Em 1991, o então jogador foi a público anunciar que tinha contraído o vírus

Fernanda Ezabella, FSP, 14.ago.2019

Há quase 28 anos, um dos maiores jogadores da história da NBA anunciava ao mundo que havia contraído o vírus HIV e estava se aposentando das quadras no auge, aos 32 anos —o astro, contudo, acabou voltando a jogar. Na época, o diagnóstico era quase uma sentença de morte e considerado por muitos um “câncer gay”. Cazuza havia morrido um ano antes; Freddie Mercury, duas semanas após o anúncio de Magic Johnson.

Nesta quarta (14), ao completar 60 anos, Earvin “Magic” Johnson Jr. continua o soropositivo mais famoso do mundo e segue com as relações, ultimamente controversas, com seu time do coração, o Lakers. 

Para comemorar mais um ano, ele está de férias com amigos e família num iate pela Costa Amalfitana, na Itália.

A longevidade do ex-jogador não tem nada de “magic”. Pacientes com HIV ou Aids, a doença causada pelo vírus que ataca o sistema imunológico, passaram a viver mais tempo e com mais saúde a partir de meados dos anos 1990, graças à evolução dos remédios.

“No começo, foram tempos muito tristes. Médicos, como eu, iam em funerais de pacientes toda semana”, diz à Folha o especialista em doenças infecciosas Dean Winslow, professor da Universidade Stanford, na Califórnia, que desde 1981 atende pessoas com HIV/Aids

“Ocasionalmente tínhamos médicos ou enfermeiras que se negavam a tratar pacientes com Aids. Ninguém sabia ainda o que causava o vírus, como era transmitido.”

Foi numa manhã de novembro de 1991 que o então armador do Lakers enfrentou jornalistas e câmeras de TV para fazer seu anúncio. Ao seu lado, o dono do time, Jerry Buss, e Kareem Abdul Jabbar, colega de quadra aposentado e uma das lendas do basquete.

Meses antes, Johnson havia se casado com Earlitha “Cookie” Kelly, com quem vive até hoje. Ela não fora infectada, nem o filho do qual estava grávida, E.J. Johnson.

O médico se lembra bem do susto com o anúncio de Johnson, ganhador de cinco títulos da NBA e eleito melhor jogador da liga por três temporadas. “Foi muito corajoso e também muito útil para tirar o estigma e alertar que HIV não ocorria só em gays ou usuários de drogas injetáveis”, diz Winslow.

Numa entrevista à revista Sports Illustrated, Johnson afirmou que havia sido infectado por relações sexuais sem proteção, mas não sabia com quem nem quando. O diagnóstico surgiu em exames de rotina para a pré-temporada da NBA.
“Antes de ser casado, tive uma vida movimentada de solteiro”, disse Johnson, negando qualquer relação homossexual

“Confesso que, ao chegar em Los Angeles, em 1979, fiz meu melhor para acolher todas as mulheres que podia, e a maioria por meio de sexo sem proteção.”

O primeiro tratamento contra HIV/Aids foi aprovado em 1987, seis anos após a descoberta do vírus, quando milhares já haviam morrido e outros milhões estavam infectados. Pouco se sabia sobre a eficácia da droga AZT, mas seus efeitos colaterais eram devastadores.

Só em 1996 uma combinação de drogas anti-HIV começou a mudar o jogo. Ainda assim, pacientes precisavam de punhados de pílulas duas ou três vezes ao dia, às vezes com restrições de alimentação. No fim da década, a terapia já estava mais refinada e os efeitos adversos aliviados. Hoje, muitos soropositivos tomam só uma ou duas pílulas ao dia.

Winslow diz que hoje a doença é manejável, com expectativa de vida praticamente igual aos dos não soropositivos. “Agora temos o luxo de poder nos preocupar com problemas com os quais não era possível se preocupar antes, como pressão alta e diabetes.”
Johnson teve acesso ao coquetel de drogas em 1994 —um ano e meio antes de chegar ao público— em testes clínicos com ajuda de seu médico, David Ho, pioneiro em tratamentos com antirretrovirais.

Numa entrevista em 2011, Ho afirmou que a rotina de Johnson incluía Trizivir 
—composto por AZT, 3TC e Ziagen, que impede o vírus de alterar a célula—, e Kaletra —dois inibidores de protease (bloqueiam a reprodução).

Hoje, existem dezenas de drogas, até as que impedem a transmissão, como a PrEP, tomada diariamente —recentemente a OMS (Organização Mundial da Saúde), com base em pesquisas, disse que a pílula não precisa ser diária— por quem é HIV-negativo. 
Segundo Ho disse à revista Newsweek, Johnson é o exemplo de que é possível ter uma vida saudável apesar do HIV. Ele afirmou que só conversava com o ex-atleta para checar se ele continuava tomando os remédios no mesmo horário todos os dias. “É um desafio porque ele é muito ocupado.”

A OMS afirma que 38 milhões de pessoas vivem com HIV/Aids. Em 2018, 770 mil morreram de complicações relacionadas ao vírus, contra 1,4 milhão em 2000.
Para Johnson, os cinco primeiros anos após o anúncio foram os mais difíceis, não só pelos tratamentos erráticos, mas pelo jeito que foi recebido nas quadras quando decidiu voltar, um ano depois. Colegas reclamaram com medo de ser infectados. Em 1992, o armador recebeu o prêmio de jogador mais valioso do Jogo das Estrelas e trouxe para casa a medalha de ouro das Olimpíadas de Barcelona.

Fora das quadras, Johnson virou ativista na prevenção do HIV/Aids. Nos negócios, virou um dos ex-atletas da NBA mais bem sucedidos, com investimentos em marcas como Starbucks e Burger King em bairros pobres, e participação em times esportivos, como Dodgers (beisebol), Sparks (basquete feminino), Los Angeles Football Club (futebol) e Team Liquid (e-sports).

O Lakers sempre foi parte importante na vida de Johnson. Em 2019, porém, outra etapa foi encerrada. Após dois anos como presidente, se demitiu em abril.

“O que estou fazendo? Tenho uma vida ótima. Vou voltar pra essa minha vida ótima”, disse a jornalistas ao anunciar a demissão, cansado dos dramas de bastidores da empresa. “Gosto de ser livre.” 

Magic Johnson e o HIV

1959  Nasce Earvin Johnson Jr., em Lansing, no Michigan 

1979  Johnson é selecionado pelo Lakers e ganha cinco campeonatos da NBA nos dez anos seguintes

1981  Médicos alertam para a existência de um vírus que debilita o sistema imunológico do corpo humano 

1982  A doença ganha nome de Síndrome da Deficiência Imunológica Adquirida (Aids, na sigla em inglês)

1985 Surge o primeiro teste diagnóstico para Aids

1986 O vírus causador doença ganha o nome oficial de vírus da imunodeficiência humana (HIV, na sigla em inglês)

1987 Aprovado o primeiro medicamento anti-HIV, Azidovudine (AZT), que torna mais lento o progresso do vírus

1991 Johnson se casa com a namorada da faculdade. Anuncia que contraiu HIV

1992 É medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona com o “Dream Team”

1994 Compra pequena participação do Lakers por US$ 10 mi(vendida por US$ 60 mi em 2010)

1996 Chegam ao mercado duas novas drogas anti-HIV, inibidores de protease e inibidores reversos não-nucleóides, que reduzem resistência do vírus.

2002 Novo medicamento é lançado: inibidores de fusão, que bloqueiam a reprodução do vírus ao entrar na célula

2007  Johnson é eleito melhor armador da história da NBA pela ESPN;
Primeiro paciente é curado do HIV após transplante de medula

2012  Aprovada pílula PrEP para pessoas com HIV negativo se prevenirem contra transmissão do vírus

2012  Johnson participa do grupo de investidores responsáveis pela compra do Los Angeles Dodgers

2016 África do Sul começa fase preliminar de estudo para vacina contra o HIV

Abril de 2019 Magic Johnson pede demissão após dois anos do cargo de presidente das operações de basquete do Lakers

2019 Registro de segundo paciente curado do HIV após receber transplante de medula óssea para tratar um câncer


Viver e amar com HIV há 25 anos: 'O vírus não mata o desejo'

Eliane Trindade para FSP, 16.07.19

Consultora e ativista, Silvia Almeida relata sua trajetória de mulher soropositiva na luta contra o estigma da Aids

Ela aprendeu a viver com HIV. E a amar, a não julgar e a encarar a epidemia de Aids sem grandes dramas.

Há 25 anos, Silvia Almeida foi diagnosticada com o vírus. Em 1997, seu marido e pai de seus dois filhos, então com 14 e 4 anos, morria de Aids.

A então viúva transformou a herança maldita em luta e aprendizado.

Silvia fez mais do que sobreviver aos preconceitos, estigmas e medos que cercam a doença que afeta mais 860 mil brasileiros e 37 milhões de pessoas no mundo.

A hoje consultora da Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ Aids) e integrante do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas lista sete lições de sua longa e inspiradora trajetória de mulher soropositiva.

“Eu tenho 55 anos. Descobri que sou soropositiva aos 30 anos. São 25 anos desde o diagnóstico. Daqui a pouco eu vou ter mais idade com HIV do que sem.”
Não se trata de “sobrevida”, palavra que ela detesta, usada no começo da epidemia quando Aids era sentença de morte.

“É vida, com qualidade e em plenitude”, diz. Silvia se considera saudável, portadora de uma doença crônica e sob controle, graças aos avanços da ciência.

Condições que lhe permitiram trabalhar até se aposentar por tempo de serviço, casar novamente, retomar a vida sexual sem riscos, curtir filhos e netos. Tudo isso com a certeza de que tem ainda muito para viver.

ACEITAR
“Meu marido morreu de Aids. Ele foi diagnosticado já doente, esse era o grande problema. Devia ter muito tempo de HIV.

Estava desenvolvendo Aids [teve uma série de doenças oportunistas em razão da perda do sistema imunológico e faleceu em decorrência de uma tuberculose] e partiu em dois anos. 

Recebi o resultado do meu teste em abril de 1994.  Tinha certeza de que ia ser positivo, apesar de não estar doente. Não usava camisinha. Ele estava doente, ia estar infectada também. Em um casamento de 14 anos, não se usa preservativo.

Era o começo da epidemia entre as mulheres, a gente começava a descobrir o que era uma transmissão sexual, que não existia grupo de riscos.

Todos estávamos vulneráveis. Mudavam os conceitos da epidemia.

Minha angústia foi esperar o resultado do exame do meu filho, que tinha um ano. A minha preocupação era com ele, de transmissão vertical [de mãe para filho]. Para meu grande alívio, ele não se infectou.

Eu tive parto normal, quando a criança tem contato com o seu sangue na hora do nascimento. Amamentei. Fiz tudo errado, porque eu não sabia.

Hoje, você tem exames e protocolos que testam antes e durante a gravidez; na hora do parto. Se são seguidos nenhuma criança precisa mais ser infectada. Penso que não era para meu filho ter HIV. Sou espiritualizada, acredito em destinos.

Eu resolvi que primeiro eu ia entender o HIV, aprender a viver com o vírus para depois poder falar sobre isso. Ao passo que fui melhorando, fazendo tratamento, ficando bem, sem aquele drama, aquele medo, consegui ir contando para os meus filhos e familiares.

Quando fui contar, levei para eles tranquilidade pela forma como eu já lidava com o HIV.

Faço tratamento? Faço. Tem cura? Não tem. Estou conseguindo viver apesar de tudo? Estou. Estou feliz? Estou. Estou saudável? Estou. Tudo isso faz diferença.

Quando você dá uma notícia ruim sem ter um mínimo de resolução, é muito complicado. Quando apresenta um problema que está sendo resolvido, é diferente.”

NÃO CRIMINALIZAR
“Acho muito doloroso pegar alguém que você amou e dividiu sua vida e criminalizar essa pessoa.  

Ela pode não saber, como pode saber, que é soropositivo.  Pode confiar que não vai infectar o parceiro. Pode não contar por necessidade de ter alguém, por medo da solidão e da rejeição.

Enfim, o ser humano é muito diverso. Dentro dessa diversidade, você encontra de tudo. Pessoas fortes, como eu, que já chegam no primeiro encontro e diz que tem HIV. Mas tem pessoas que nunca vão conseguir contar.

A notícia cai como uma bomba dentro de casa. Fica aquela pergunta: Onde erramos? O que aconteceu? De onde veio? Por que veio?
Sinceramente, são perguntas sem respostas. 

Quando perguntei para meu marido o que tinha acontecido, ele me olhou e disse: ‘Eu não sei. Estou tão perdido quanto você’.
Ali, senti o que era o HIV e o que era Aids. As pessoas se infectam porque são vulneráveis.

Essa vulnerabilidade vem da nossa forma de viver a sexualidade. Muitas vezes o homem é criado nesse padrão machista que dava direito a ele de ter um caso extraconjugal.

Conheci muitas mulheres que se separaram, que odiaram seus companheiros, quando descobriram terem sido infectadas por eles.

Não consegui odiar o homem que eu amava. Consegui enxergar nele uma vítima, assim como eu. Ele não ia ver nossos filhos crescerem. Ele não conheceu os netos.

Ninguém infecta ninguém porque quer e muito menos infecta sabendo que a pessoa ia sofrer tudo que a Aids causava naquele momento. 

Querer saber quem te infectou ou culpar a pessoa tem muito a ver com a não aceitação. De colocar no outro a responsabilidade que é sua.

Se olharmos para trás, há 30 anos, quem tinha consciê ncia de HIV, do uso de preservativo?

Hoje pode-se cobrar mais. Cobrar o uso de preservativo, de relação desprotegida. O teste está aí, é rápido. Tem muito mais informação.” 

VIVER
“Logo depois do diagnóstico, comecei a procurar alguma coisa que me ensinasse a viver com o HIV. Acabei conhecendo o GIV (Grupo de Incentivo à Vida). Ao frequentar as reuniões, aquilo foi tomando uma proporção grande. Via quantas mulheres sofriam, quantas pessoas eram despedidas de seus empregos. Era muito estigmatizante.

Fui aprendendo o quanto a gente não sabia nada, o quanto as pessoas sofriam por conta deste não saber.

Fui retomando minha vida conforme entendia o HIV. Que tinha que tratar, tomar cuidados, mas que a vida não podia nem devia parar por causa do vírus.
Um ano depois que fiquei viúva, fiz uma viagem com umas amigas para Porto Seguro. Todo mundo devia ir para a Bahia, quando descobre uma notícia ruim. Acabei conhecendo uma pessoa e tive um affair de férias.

Rolou insegurança. Era preciso negociar o uso de camisinha de cara. Não era o caso de contar [que é soropositiva]. Até porque ia ser coisa de alguns dias.

Percebi que existia sexo seguro, mas que era muito difícil de negociar. Eu consegui negociar.”

AMAR
“Veio o entendimento de que o HIV não tira sua sexualidade, nem o desejo. É uma doença, é um vírus, precisar cuidar dela como manda o figurino, mas a vida tem que ser levada adiante.

E quanto mais saudável e feliz é a sua vida, mais isso se reflete em benefícios para o corpo. E para o tratamento, por consequência.

Depois daquele affair nas férias, conheci outra pessoa na ONG e ficamos juntos dez anos. Ele também era soropositivo.
Tive um casamento instável novamente, mas sempre usando preservativo.

Agora, tenho relacionamento sorodiferente [quando apenas um dos parceiros é soropositivo]. Meu atual marido não tem HIV. Estamos juntos há seis anos. Nos conhecemos no meu trabalho numa mineradora, ele é jornalista desta área.

Um dia, ele me chamou para fazer uma visita a Sorocaba, a cidade em que moramos hoje. Pensei: ‘Como vou para a casa de uma pessoa que não sabe que tenho HIV?’

Decidi que ia contar antes de sair com ele, que já era próximo. Mandei por e-mail uma reportagem que eu tinha participado. Ele leu e respondeu: ‘Isso não muda nada. Vamos nos conhecer’.

Ele não teve medo. O que afasta é o medo. Teve muita conversa. Como ter uma relação segura? O que é o HIV? Como pega? Como não pega? Como se previne?

O melhor é como não pega: no contato social, no beijo, no abraço. Havia todos estes fantasmas. De não compartilhar utensílios, copos, talheres.
Eu já era ativista, lutava contra preconceitos e estigmas. Era outro momento da epidemia. Para ele, foi ficando muito tranquilo.

No começo, nós nos relacionávamos de camisinha. Hoje, podemos não usar preservativo com segurança. Existe a questão do i=i (indetectável é igual a intransmissível).

Quando você faz o tratamento há mais de seis meses e a sua carga viral fica indetectável, ela está tão reduzida no seu sangue que não está circulando mais. Então, não transmite.

A gente se apoia neste estudo e na minha carga viral indetectável para dispensar o preservativo. Há cinco anos, ele faz teste uma ou duas vezes por ano. 
E continuamos um casal sorodiferente.
É importante falar sobre isso. Tira o estigma. A minha parte do cuidado é a minha medicação. Manter a minha carga viral indetectável. A gente também precisa cuidar de outras ISTs (Infeções Sexualmente Transmissíveis). Estamos sempre fazendo exames.

Encarei com tranquilidade voltar a fazer sexo sem preservativo. Eu me seguro no meu autocuidado que também protege o outro.”

NÃO JULGAR NEM SE JULGAR
“Temos vários perfis de pessoas soropositivas. Temos aquelas que conseguiram incluir o tratamento na sua rotina e vivem normalmente.

Temos ainda pessoas que se infectam e sofrem muito. Têm autopreconceito.

Elas não conseguem aceitar o HIV, levam isso para a sociedade e recebem preconceito de volta. Neste caso, o tratamento é mais difícil. A mente e o emocional influenciam muito nosso corpo.

Têm aqueles com muito medo e pouca informação. Preferem não fazer exame nunca. Preferem morrer sem saber. É muito complicado.

E ainda aqueles que não têm medo e se expõem de uma forma que não seria necessária. Aquela coisa: ‘Não vai acontecer comigo’.

São pessoas que não conseguem enxergar a vulnerabilidade.

Para um homem heterossexual soropositivo tem uma questão profunda que é a masculinidade. O fato de alguém minimamente pensar que ele é gay é muito forte.

Para a mulher, vem o autojulgamento. O que é que eu fiz de errado? Por que transei? Por que não usei camisinha?

Infelizmente, ainda se dá uma conotação moral muito grande para a Aids. Não importa se você é uma mulher livre com vários parceiros, a vida é sua. Ou se você é homossexual, usuário de droga. Não temos o direito de julgar. É esse julgamento que causa dor.”

SE TRATAR

“Não desenvolvi nenhuma doença oportunista, porque ela se oportuna da falta de defesa. Sempre me tratei e estive atenta à minha saúde.

O momento mais crítico foi a descoberta do HIV e a perda do meu marido. Nessa época, eu tive uma anemia muito grande e uma sinusite que me impedia de respirar. Fiquei internada uma semana depois que ele morreu.

De lá pra cá, eu nunca mais tive nada. Me aposentei após 32 anos de trabalho. O tempo maior que fiquei afastada da empresa foram dois meses, porque eu quebrei o pé.

Fui muito respeitada no trabalho na Anglo American e me beneficiei de uma política de cuidados para com os funcionários soropositivos. São direitos que muitos ainda não conseguem acessar nem brigar por eles.

Aos 55 anos, eu me preocupo com coisas da idade como osteoporose, gordura, colesterol, triglicérides. Problemas que viriam para qualquer um, mas vêm de forma mais intensa e preocupante para quem usa antirretrovirais, como nós.

Quero envelhecer saudável. Rezo todos os dias para o medicamento anti-HIV não fazer mal. São tantos anos tomando drogas fortes. Espero que meu fígado e rim segurem mais um pouquinho. Quero viver mais uns 20.

Penso na cura da Aids, cada vez que vejo uma medicação nova, um transplante que dá resultado, possibilidades novas de tratamento.

Quiçá daqui a 20 anos tenhamos a cura. Se eu estiver aqui, vou ficar muito feliz. Se eu já tiver ido, vou ser grata, porque a vida me trouxe um aprendizado humano muito grande. Conheci pessoas especiais, entendi a dor delas. Aprendi a não julgar nem discriminar.

Tenho um leque de amigos gays. Aprendi a respeitar a transexualidade, entender que as pessoas podem fazer outras escolhas. A Aids me trouxe muito crescimento. Talvez eu não fosse tão humana como sou hoje se eu não tivesse passado pela herança do HIV.”

NÃO EDUCAR
“Eu decidir me expor como soropositiva, porque eu estava em uma empresa que me protegeu, me acolheu e não me demitiu. Isso foi fundamental.

A partir do momento em que virei ativista, fui entendendo que muito sofrimento era causado porque as pessoas ignoravam a própria vulnerabilidade, ignoravam a forma como o vírus era transmitido.

Eu sou uma mulher heterossexual, tive um único casamento, vinha de uma família estruturada e era soropositiva. Quantas outras não poderiam ser como eu?

Isso foi me levando a querer passar informação. ‘Olha, eu tinha um casamento estável. Não é só por estar casada que você vai estar protegida. Meu marido era um cara legal, ótimo pai, excelente companheiro, não era usuário de drogas e morreu de Aids.’  

Resolvi ter visibilidade para passar esse alerta. Caminhamos muito na tecnologia, nos exames, no tratamento, mas não evoluímos na educação sexual. Continuamos tratando a sexualidade como tabu.

Temos que falar abertamente de sexo seguro, autoconhecimento, machismo. Enquanto não se começar a resolver, de verdade, esses gaps, nunca vamos resolver a questão de prevenção como um todo.

Por favor, não venham proibir cartilha de educação sexual. Demoramos tanto para conseguir dizer: ‘Você tem um corpo, seja com vagina, seja com pênis, esse corpo precisa ser cuidado’.

É preciso entender que o desejo nasce e morre com a gente. Enquanto não se olhar para todas estas questões com naturalidade, sexo será sempre do outro. A doença será sempre do outro.”

Eliane Trindade
Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.


Brasil participará de fase avançada de teste de vacina contra HIV

3.800 voluntários de oito países devem participar do ensaio clínico

Matheus Moreira - FSP, 24.jul.2019

Uma vacina preventiva contra o HIV deve passar pela última fase de testes em humanos em oito países da Europa e da América, entre eles o Brasil, para avaliação de sua eficácia.

A pesquisa, apelidada de Mosaico por juntar vários subtipos do vírus para formar uma proteção ampla, está na fase 3. Esse é o estágio mais avançado dos testes antes de a imunização ser aprovada. Nessa etapa, milhares de voluntários recebem a vacina para que a capacidade de prevenir novas infecções seja avaliada.

A vacina, iniciativa do NIH (Institutos Nacionais de Saúde) dos EUA, será testada em 3.800 homens e pessoas transexuais que mantêm relações sexuais com homens e transexuais e que tenham entre 18 e 60 anos. Nos EUA, as inscrições devem começar ainda em 2019. 

No Brasil, a Faculdade de Medicina da USP será uma das instituições parceiras envolvidas no teste, segundo Esper Kallás, imunologista e professor da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP). Ele afirma, porém, que ainda deve demorar alguns meses até que se possa falar em inscrições de voluntários. A FMUSP recebeu apenas uma carta oficializando a parceria e aguarda os protocolos do teste.

O público-alvo tem a ver com a alta prevalência do HIV entre homens gays e bissexuais e mulheres transgênero. Nos EUA, a população gay e bissexual (que representa 4% do total) responde por um terço dos novos casos de HIV, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano. O órgão também aponta que pelo menos 14% das mulheres transgênero americanas têm o vírus.

O Mosaico avaliará se a vacina induzirá respostas imunes contra múltiplos subtipos do HIV. 

Um outro estudo complementar realizado apenas com mulheres (2.600 voluntárias) em cinco países da África Austral, chamado de Imbokodo, encerrou as inscrições em maio de 2019 e deve apresentar seus primeiros resultados em 2021. 

Um terceiro estudo, que foi lançado no fim de 2016, passou por uma atualização e encerrou apenas neste ano a inscrição dos 5.400 voluntários homens e mulheres sexualmente ativos entre 18 e 35 anos. 

Todos os participantes do Mosaico receberão um kit de prevenção contra HIV, incluindo o PrEP (Profilaxia pré-exposição), medicamento utilizado para impedir o contágio pelo vírus. Além disso, os voluntários receberão, de forma aleatória, a vacina experimental ou uma injeção sem efeito. 

A vacina será administrada quatro vezes ao longo de um ano. As duas doses iniciais utilizam um composto criado a partir de um vírus de resfriado modificado e que não causa a doença para “entregar” quatro imunógenos —substância que induz respostas imunológicas. Já as duas doses finais serão compostas por proteínas do envelope viral de dois tipos de HIV.


Como funcionam as vacinas
1
Uma versão mais fraca ou morta (fragmentada) do patógeno (como o vírus HIV) é injetada na pessoa
2
Essas versões não causam a doença e o corpo cria anticorpos para lutar contra
esses patógenos ou pedaços deles
3
Se os patógenos de verdade atacarem, os anticorpos já produzidos pelo organismo os combaterão e a doença não terá chance de se instalar

Como será o novo estudo

Público
A pesquisa de fase 3 (a última antes da comercialização, caso os resultados sejam positivos) vai convocar 3.800 homens sem HIV e pessoas transgênero entre 18 e 60 anos que fazem sexo com homens e/ou transgêneros

Locais
As inscrições devem começar neste ano nos EUA. Também vão participar Brasil, Argentina, Itália, México, Polônia, Espanha e Peru

A vacina

• O estudo vai avaliar uma vacina baseada em "imunógenos mosaico", com elementos de diferentes subtipos de HIV, que poderiam induzir uma resposta imune contra uma grande variedade de cepas do vírus

• Diferentes subtipos de HIV predominam em diferentes regiões do mundo. O C é comum no sudeste africano, enquanto o B é predominante na Europa e na América


• A vacina é uma parceria público-privada entre a farmacêutica Janssen e o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID), um órgão público americano

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Após marco em política de redução de danos, país vive retrocesso

Há 30 anos, Santos protagonizava troca de seringas para frear epidemia de Aids

Com a decisão do governo de Jair Bolsonaro (PSL) de excluir a redução de danos na sua nova política de drogas, priorizando o tratamento baseado em abstinência, o Brasil dá um enorme passo atrás em uma iniciativa considerada um marco da saúde pública na prevenção das consequências negativas associadas ao uso das drogas.

Programas de redução de danos não cobram abstinência como condição para o tratamento. São direcionados para usuários que não querem ou que não conseguem parar o consumo de drogas. O conceito remonta à Inglaterra de década de 1920, do pós-guerra. Muitos soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial foram tratados com morfina e se tornaram dependentes de opioides. 

Por uma questão de patriotismo, já que se tratavam de heróis da guerra, o próprio governo britânico autorizou que médicos prescrevessem ópio a dependentes em situação de risco.

A proposta voltou à tona na década de 1980, na Holanda. Na época, crescia a disseminação de hepatite B pelo compartilhamento de seringas contaminadas. Com a perspectiva de que uma epidemia de hepatite afetaria a sociedade como uma todo, não só os usuários de drogas, o governo implantou o primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã, em 1984.

Depois disso, em países como Suíça, Espanha (1990) e França (1994) surgiram programas não só de substituição de seringas para frear a epidemia de Aids entre os usuários de drogas injetáveis como também de tratamentos que substituíam o ópio e a heroína por metadona (droga também à base de ópio, porém, de ação mais lenta).

Um estudo da Universidade Pierre e Marie Curie (Paris), publicado em 2006, demonstrou que caíram as taxas de incidência de infecção por HIV entre os usuários de drogas injetáveis após a adoção desses programas: a França, entre 1994 e 2002, observou queda de 23% para 14%. Na Espanha, entre 1996 e 2002, o índice passou de 38% para 33%. Houve queda também de mortes por overdose. Na França, de 588 para 89, entre 1994 e 2003. E na Espanha, de 579 para 221, entre 1991 e 2002.

Há 30 anos, Santos (SP) protagonizava a adoção da primeira política de redução de danos do Brasil. Em 1989, o município passou a distribuir seringas aos usuários de drogas injetáveis para que deixassem de compartilhá-las, evitando, dessa forma, novas infecções por HIV. Com a medida, a prática que era adotada por 70% dos usuários caiu para 20%, segundo estudos feitos naquele período.

O programa também previa a acompanhamento para a redução gradual do consumo e, ao longo prazo, reinserção do usuário na sociedade. Mas foi encerrado após pressão do Ministério Público.

Em 2005, uma portaria do Ministério da Saúde viria a regulamentar os programas de redução de danos como política de saúde pública, mas, na realidade, eles nunca passaram de experiências pontuais. 

Em São Paulo, em 1999, dependentes de crack foram estimulados a consumir maconha em um estudo coordenador pelo psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O trabalho acompanhou 25 usuários de crack por seis meses, que substituíram a droga por maconha. Ao final desse período, 17 tinham abandonado o crack. Ganharam peso e retomaram atividades como estudar e trabalhar. Dos oito restantes, quatro abandonaram o tratamento e outros quatro não conseguiram deixar o crack.

Em 2017, uma pesquisa da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, revisou três estudos que acompanharam 300 usuários de crack no país, sendo que desses, 122 usavam maconha como alternativa. Trinta meses depois, as chances desse grupo reduzir o consumo de crack foram 89% maiores.

O fato é que existe um acúmulo de experiências suficiente para demonstrar que a redução de danos, associada a outras medidas, é uma alternativa efetiva para uma parcela dos usuários. Pode prevenir outros danos associados ao uso de drogas pesadas, como perda de emprego e quebra de vínculos familiares e sociais.

Mas, a despeito das evidências, o atual governo quer se apoiar apenas no tratamento baseado em abstinência que, segundo a literatura médica disponível, seria eficaz para, no máximo, 30% dos usuários. Ou seja, o Brasil investirá numa política que fracassa em 70% dos casos.

Nos últimos anos, as comunidades terapêuticas, que pregam a abstinência, ganharam espaço, apesar das polêmicas em torno desse modelo. Em artigo publicado na Revista Internacional de Direitos Humanos, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp, diz que os mecanismos regulatórios frouxos das comunidades terapêuticas podem resultar em sérios riscos de violações aos direitos humanos e doutrinação religiosa como forma de tratamento aos usuários. Isso tudo com financiamento estatal. 

Ele cita um relatório do Conselho Federal de Psicologia, de 2015, que apontou sérias violações aos direitos humanos em serviços de tratamento para usuários problemáticos de drogas. Entre elas, cárcere privado, trabalho análogo à escravidão e desassistência sanitária.

Não se sabe quantas comunidades terapêuticas no país vivem situações graves como essas. Por isso, é fundamental que esse setor seja investigado e muito bem regulado, especialmente agora que ganha força (e mais recursos públicos) na nova política de drogas. 

Por último, vale lembrar que, em 2017, na 70ª Assembleia Mundial da Saúde, a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou a adoção de estratégias de redução de danos como forma de lidar com as questões sociais associadas à dependência de drogas e garantir acesso a serviços de saúde.

Ao excluir a redução de danos no tratamento de usuários de drogas, o governo Bolsonaro abraça uma visão moralista e religiosa sobre a dependência, que não encontra amparo na boa ciência. 

Cláudia Collucci
FSP
Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Política moralista só fez aumentar taxa de transmissão de HIV entre jovens

Cláudia Collucci - FSP - 01.01.2019
Interferência de bancada conservadora em campanhas de saúde pública deve crescer

É preocupante a fala do novo ministro da Saúde na gestão de Jair Bolsonaro, o médico Luiz Henrique Mandetta, de que o Estado tem que tomar cuidado para não ofender as famílias com campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids.

Mandetta não deixa claro que tipo de abordagem caracterizaria uma "ofensa às famílias", muito menos a que modelo familiar ele se refere. Mas a história tem mostrado que quando falsos moralismos se sobrepõem às evidências científicas há impactos muito negativos nas políticas de saúde.

Não é de hoje que a bancada conservadora do Congresso interfere diretamente em campanhas públicas de saúde, especialmente nas que dizem respeito às infecções sexualmente transmissíveis. Foi por pressão dela que o Ministério da Saúde, no período que antecedeu ao Carnaval de 2012, suspendeu a exibição de propaganda com foco na prevenção do HIV em jovens gays.

Em março de 2013, também mandou recolher um material de prevenção das DSTs/Aids dirigido a adolescentes, que abordava temas como a homossexualidade, drogas e gravidez. Ainda houve vetos em campanha voltada para as prostitutas, grupo que representa entre 10% e 15% das mulheres infectadas pelo HIV no país.

Nos últimos anos, também por pressão dos conservadores, reinou no ambiente escolar um silêncio sobre sexualidade, riscos, questões de gênero e preconceito.

Bolsonaro já disse, por exemplo, ser contra a abordagem da sexualidade nas instituições de ensino. “Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química”, afirmou em novembro.

Para pesquisadores, a interferência conservadora pode ser uma das causas do aumento da taxa de transmissão do HIV entre meninos de 15 a 19 anos. Entre 2006 e 2015, ela triplicou nessa faixa etária, segundo estudo encomendado pelo Ministério da Saúde, divulgado em maio. Entre jovens de 20 a 24 anos, duplicou. São Paulo é a cidade com maior prevalência do vírus, com 24.8%

"O crescimento do apoio da bancada 'boi, bala e bíblia' em um Congresso considerado o mais conservador na história da democracia do país levou a redução nas pautas de gênero e sexualidade e reduziu o apoio a programas que focam nas necessidades de homens que fazem sexo com homens", diz o estudo.

Mas não é só isso. A mudança no comportamento sexual entre os jovens, que não teme mais a Aids, também influencia no aumento da taxa de transmissão do vírus. O estudo mostra que é justamente a faixa etária mais infectada que dá menos importância ao sexo seguro e ao risco de contrair HIV por acreditar na eficácia dos tratamentos disponíveis na saúde pública e medicamentos de profilaxia.

Na entrevista, Mandetta faz críticas à atual política de controle do HIV, dizendo que é necessário rever o padrão de comunicação nessas campanhas. A própria pesquisa encomendada pelo ministério concluiu que para a redução da taxa de infectados no Brasil é preciso investir em abordagens e campanhas que envolvam as comunidades LGBT e também que falem com os jovens para conscientizar sobre os riscos da HIV e a importância de se proteger durante o sexo.

Não é com uma política de prevenção moralista que essas metas serão alcançadas, especialmente entre as populações mais vulneráveis. O Brasil já foi considerado um dos países modelos no tratamento da Aids e conseguiu essa resposta graças à combinação de ações, como defesa de direitos civis, combate ao preconceito, aumento da autoestima das populações afetadas, distribuição de preservativos, acesso ao teste de HIV e tratamento com remédios antirretrovirais.

Nos últimos anos, no entanto, o governo tem colecionado equívocos que podem levar ao agravamento da epidemia de Aids. A contar pelas declarações do atual governo e pelo aumento da bancada conservadora no Congresso, a coleção de retrocessos deve crescer muito mais a partir desta terça (1º).


Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiacollucci/2019/01/politica-moralista-so-fez-aumentar-taxa-de-transmissao-de-hiv-entre-jovens.shtml

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